sexta-feira, 9 de abril de 2010

Atenção: Próximo texto de Antropologia

Cultura e antropologia
In: CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia, 13ª ed., São Paulo: Ática, 2004, p. 249-251

     A palavra antropologia é composta de duas palavras gregas: antropos, que significa “homem”, e logia “estudo" (palavra derivada de lógos, que significa "pensamento ou razão", "linguagem ou discurso"). A antropologia estuda os seres humanos na condição de seres culturais. O antropólogo procura, antes de mais nada, determinar em que momento e de que maneira os humanos instituem sua diferença em relação à natureza, fazendo assim surgir o mundo cultural.
     Os filósofos, a partir do século XVIII, consideraram que os humanos diferem da natureza graças ao pensamento, à linguagem, ao trabalho e à ação voluntária livre.
     Os antropólogos, a partir do século XX, sem negar a afirmação dos filósofos, procuram aquela ação com a qual os seres humanos instituem a cultura propriamente dita. Ou seja, como os filósofos, os antropólogos também consideram que as condições para que haja cultura são o pensamento, a linguagem, o trabalho e a ação voluntária, porém julgam que não basta apontar essas condições e que é preciso dizer que ação os homens praticaram ou que decisão tomaram que os fizeram passar da possibilidade da cultura à realidade efetiva dela.
     Se, para muitos historiadores, essa ação foi o trabalho, para muitos antropólogos a cultura foi instituída quando os humanos marcaram simbolicamente sua diferença com relação à natureza, decretando uma lei que não poderia ser transgredida e, se o fosse, a comunidade exigiria reparação com a morte do transgressor. A diferença entre homem e natureza, que dá origem à cultura, surge com a lei da proibição do incesto, lei inexistente entre os animais. Essa lei dá início à sexualidade propriamente humana, que não é apenas a satisfação imediata de uma necessidade biológica, mas é definida por regras que instituem o proibido e o permitido na expressão do desejo. Os seres humanos dão sentido à sexualidade.
     Para alguns antropólogos, além dessa lei, a diferença entre homem e natureza também é estabelecida quando os humanos definem uma outra lei que, se transgredida, causa a ruína da comunidade e do indivíduo: a lei que separa o cru e o cozido, lei também inexistente entre os animais. A separação entre o cru e o cozido e a exigência de que os humanos comam alimentos que passaram pelo fogo colocam a culinária no ponto inicial da cultura. Assim como a sexualidade humana, também a alimentação humana não é apenas a satisfação de uma necessidade biológica de sobrevivência, mas está ligada a regras que lhe dão um sentido propriamente humano.
     Essas duas primeiras leis estruturam o mundo humano a partir da oposição entre puro (permitido) e impuro (proibido), oposição inexistente para todo o restante da natureza. Sexualidade e culinária introduzem a dimensão simbólica da vida humana.
      A cultura como ordem simbólica
     A cultura é instituída no momento em que os humanos determinam para si mesmos regras e normas de conduta que asseguram a existência e conservação da comunidade e por isso devem ser obedecidas sob pena de punição (que pode ir desde um castigo ou a expulsão para longe do grupo de origem até a morte).
     O que é a lei humana? A lei humana é um mandamento social que organiza toda a vida dos indivíduos e da comunidade, tanto porque determina o modo de estabelecimento dos costumes e de sua transmissão de geração a geração como porque preside as ações que criam as instituições sociais (religião, família, formas de trabalho, guerra e paz, distribuição das tarefas, formas de poder, etc.). A lei não é uma simples proibição para certas coisas e obrigação para outras, mas é a afirmação de que os humanos são capazes de criar uma ordem de existência que não é simplesmente natural (física, biológica). Essa ordem é a ordem simbólica.
     A ordem simbólica consiste na capacidade humana para dar às coisas um sentido que está além de sua presença material, isto é, na capacidade de atribuir significações e valores às coisas e aos homens, distinguindo entre bem e mal, verdade e falsidade, beleza e feiúra; determinando se uma coisa ou uma ação é justa ou injusta, legítima ou ilegítima, possível ou impossível. É essa dimensão simbólica que é instituída com a lei da proibição do incesto e a lei da proibição do cru.
     Graças à linguagem e ao trabalho, os seres humanos tomam consciência do tempo e das diferenças temporais (passado, presente, futuro), tomam consciência da morte e lhe dão um sentido; organizam o espaço, humanizando-o (isto é, dando sentido ao próximo e ao distante, ao alto e ao baixo, ao grande e ao pequeno), ao visível e ao invisível. A diferenciação temporal e espacial permite que os seres humanos se relacionem com o ausente diferenciando não só o presente do passado e do futuro e o próximo do distante mas também distinguindo o sagrado e o profano, os deuses e os homens.
     Podemos, então, definir a cultura como tendo três sentidos principais:
     1. criação da ordem simbólica da lei, isto é, de sistemas de interdições e obrigações estabelecidos a partir da atribuição de valores às coisas (boas, más, perigosas, sagradas, diabólicas), aos humanos e suas relações (diferença sexual, significado da virgindade, fertilidade, virilidade; diferença etária e forma de tratamento das crianças, dos mais velhos e mais jovens; formas de tratamento dos amigos e dos inimigos; formas de autoridade e formas de relação com o poder, etc.), aos acontecimentos (significado da guerra, da peste, da fome, do nascimento e da morte, obrigação de enterrar os mortos, etc.);
     2. criação de uma ordem simbólica da sexualidade, da linguagem, do trabalho, do espaço, do tempo, do sagrado e do profano, do visível e do invisível. Os símbolos surgem tanto para representar como para interpretar a realidade, dando-lhe sentido pela presença do humano no mundo;
     3. conjunto de práticas, comportamentos, ações e instituições pelas quais os humanos se relacionam entre si e com a natureza e dela se distinguem, agindo sobre ela ou através dela, modificando-a (rituais do trabalho, rituais religiosos, construção de habitações, fabricação de utensílios e instrumentos, culinária, tecelagem, vestuário, formas de guerra e de paz, dança, música, pintura, escultura, formas de autoridade, etc.).
     Na realidade, não existe a cultura, no singular, mas culturas, no plural, pois os sistemas de proibição e permissão, as instituições sociais, religiosas, políticas, os valores, as crenças, os comportamentos variam de formação social para formação social e podem variar numa mesma sociedade no decorrer do tempo. A esse sentido amplo podemos acrescentar um outro, restrito, proveniente do antigo sentido de cultivo do espírito: a cultura como criação de obras da sensibilidade e da imaginação — as obras de arte — e como criação de obras da inteligência e da reflexão — as obras de pensamento, isto é, a ciência e a filosofia.
     É esse segundo sentido que leva o senso comum a identificar cultura e escola (educação formal), de um lado, e, de outro, a identificar cultura e belas-artes (música, pintura, escultura, dança, literatura, teatro, cinema, etc.). É também esse sentido que leva à distinção entre cultos e incultos, entendida respectivamente como "escolarmente instruídos" e "sem instrução escolar".
Questões:
01. Segundo o texto, qual o objeto de estudo da antropologia e o objetivo dos antropólogos?
02. Para a antropologia, a proibição do incesto e a culinária estão na base da constituição cultural dos seres humanos. Explique por quê.
03. O que é a lei humana? Qual o seu significado na constituição simbólica dos seres humanos?
04. Explique a cultura como ordem simbólica.
05. Para a autora a cultura tem três sentidos principais. Explique cada um deles resumidamente
06. Comente a frase “não existe a cultura, no singular, mas culturas, no plural”
07. Em sentido, restrito, cultura pode significar “cultivo do espírito”. Como essa perspectiva influencia a visão do senso comum sobre arte e educação.

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